O amor e a ousadia política
“Quem quer viver um amorMas não quer suas marcasQualquer cicatrizA ilusão do amorNão é risco na areiaÉ desenho de giz.”João Bosco e Abel Silva
Pensar o amor nos tempos atuais requer compreender o que conceito efetivamente abriga. E, nesse esforço de compreensão, nota-se que o mito do amor romântico ainda povoa o nosso imaginário como um modelo a ser alcançado. Ainda hoje, os nossos afetos são cotidianamente embalados como produtos prêt-à-porter que devem ser ajustados aos ideais de amor puro de Rousseau, ou emocional decantado por Shakespeare.
A vivência amorosa foi aos poucos retirada da esfera íntima para ser vivida em público e, se possível nas timelines das redes sociais. Desse ponto de vista, não basta viver uma experiência amorosa efetiva, mas é preciso exibir as suas evidências na cena pública como condição sine qua non do sucesso e da felicidade.
Crescemos reiterando que as escolhas afetivas não eram, ou pelos menos não precisavam ser, marcadas pelo pertencimento social ou racial, afinal o amor era algo que nos igualava na condição de humanos.
O tempo passou e os processos globais, como “águas de enchente”, atravessaram e colocaram em contato as diversidades e convicções. Elementos socioculturais distintos se tornaram, pela lógica mercantil global, parte constitutiva de um mesmo caldo de operações econômicas. Desse ponto de vista, a humanidade amorosa, decantada no idílio universalista dava mostras de insuficiência e atualizava o enredo trompeur para “amores, amores, condição sociocultural à parte”.
Nesse contexto, a máxima popular “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar” ecoava como um golpe para a mulher negra e evidenciava a condição do amor afrodescendente em tempos de comunidades-cabide, em que os laços afetivos se moldam pelas trocas e ganhos imediatos e fugazes. Não sem resistência, constatou-se que “a carne mais barata do mercado, é a carne negra. “
A transição entre os séculos XX e XXI trouxe em seu bojo um radical deslocamento da ideia de amor entre as mulheres de minha geração e das que se seguiram. A ampliação da presença no mercado de trabalho e nos espaços formativos e um paulatino controle sobre a corporeidade e os desejos tornaram -nos mais ciosas de nosso estar no mundo. A consequente ruptura com o modelo proprietário das uniões estáveis e com o embuste do “foram felizes para sempre” exigiu um reposicionamento em relação à ideia de amor em nosso tempo.
E, na medida em que amar deixou de ser o pertencimento e o provimento dos prazeres do outro, ainda ensinados em escolas de princesas em pleno século XXI para “belas, recatadas e do lar”, tem se tornado efetivo o reposicionamento das máximas populares sobre os afetos contemporâneos: “nunca namore um homem que não lide bem com o seu poder”.
Do fronte das carapaças experimentadas para nos protegermos da sevícias do racismo no território dos afetos, percebo que aos poucos, vamos ressignificando o lugar do amor entre nós e provendo de leveza e ternura o nosso bem querer.
Para nós, mulheres negras, daqui e de alhures, amar é, antes de tudo, uma ousadia política pactuada e experimentada como uma urdidura coletiva.
Acredito que empoderamento sociocultural alcançado nos últimos anos deve incluir, necessariamente, o nosso protagonismo como sujeitos de amor, afetos e desejos.
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